“Agora são quatro doutores, a surra vai ser maior ainda”
A frase-título deste artigo, denunciada pelas aspas que foi proferida por outrem, é emblemática. Mais ainda, por ter sido proferida pelo atual prefeito da cidade de Santa Cruz! E, mais que piada, revela um texto oculto que desnuda o espírito do sistema político que há alguns anos comanda o poder municipal.
Quem vê a cidade de fora, com seus indicadores sociais, percebe quão daninho tem sido esse sistema político, profundamente arraigado no fisiologismo herdado da política dos coronéis, numa linha contínua que vai de Theodorico Bezerra ao ex-governador Iberê Ferreira de Souza e seus seguidores. E, atenção, eleitores: não há diferença entre nome X ou Y. O que se tem hoje é herança e continuidade do que veio antes, porque o DNA do modo de fazer política é o mesmo. Claro que com algumas variações pessoais de estilo – enquanto um não aparece nem nos eventos públicos, outro arranja a cirurgia para o pobre coitado no hospital, pelo SUS, vai lá, pessoalmente, faz uma visita e diz que pagou do próprio bolso, mantendo o infeliz devedor seu para o resto da vida. É só uma questão de estilo!
Nesse sistema, a perceptível ausência de políticas públicas que promovam a vida do santa-cruzense a um mínimo de dignidade delineia o deboche com que os mandatos eletivos – que devem estar a serviço do povo – têm sido tratados. E assim o sendo, a malfadada frase do ex-prefeito evidencia e confirma esse deboche.
Ora, tratar a concorrência ao poder municipal como se se estivesse em um round de luta livre (“a surra vai ser maior ainda”), é, no mínimo, questionável para um gestor. Depois, vejamos, leitor, o teor da frase: “Agora são quatro doutores…”. A relação direta estabelecida entre alguém da oposição pleitear o mandato e ser “doutor”, da forma debochada como foi feita, talvez explique o porquê de tanto descaso com a saúde do município! Revela um ranço contra o fato de se ser médico – profissão cuja importância ninguém questiona – que se estende a outros profissionais cujas funções são essenciais para elevar a dignidade do cidadão: o professor, o agente de saúde, o policial, o artista… E que coincidência!! Pelo que se lê desses indicadores sociais, profissionais ligados às áreas que mais carecem de investimentos e que menos os têm no âmbito municipal. Não foi noticiário dos blogs dia desses que o orçamento do Departamento Médico de um time era maior do que o orçamento do hospital local? Isso não foi em Santa Cruz? (Tirem-nos a dúvida, blogueiros de plantão!)
É importante, nesse contexto, que o cidadão santa-cruzense não perca nem a esperança de que pode haver uma real mudança na política local, nem perca a capacidade de se indignar. É preciso que preconceitos do tipo que sentencia que “médico nunca governou bem a cidade” sejam deixados de lado. Porque não há relação entre a profissão que se exerce e o fazer política (a não ser, claro, que o pleiteante a um cargo tenha como principal atividade a agiotagem – isso, sim, deve preocupar!), do contrário, um torneiro-mecânico, historicamente tratado com desdém pelas elites do nosso país, não teria mostrado que é possível transformar o modo de fazer política e colocar o mandato a serviço das necessidades da população. Quem, vindo do povo, desaprova o governo Lula?
O que importa, realmente, em um pleito, é que seja observado o histórico do candidato: é ligado a algum grupo que tem discutido de fato os problemas reais do povo do município ou tem se colocado sempre ao lado do candidato que lhe oferecer mais favores, mesmo tendo um discurso de mudança? O candidato tem permanecido historicamente ligado ao mesmo grupo, assumido uma postura coerente com o discurso que prega ou tem mudado de lado como camaleão muda de cor? Ou será que o candidato faz parte do mesmo sistema que se reveza no poder para poder deixar tudo como está?
Atenção, santacruzense: o momento é de reflexão, participação e de cobrança a projetos de uma cidade mais humana, mais justa, mais participativa, mais cuidadosa com o dinheiro público.
Neste momento, é sempre bom considerar o que diz Paulo Freire, grande educador e humanista brasileiro: “O sectarismo pretende conquistar o poder com as massas, mas estas depois não participam do poder”. Quem do povo santa-cruzense tem se sentido partícipe do poder municipal?
Aparecida Fernandes
Profa. do IFRN – Campus Santa Cruz.